Lao Tsé bronzeava sua longa barba alva em uma praia no Mar Amarelo, deitado sobre uma esteira de bambu. Uma sereia emergiu das ondas e regurgitou um pergaminho semi-digerido sobre ele, iniciando logo um estridente canto monofônico. Lao, a esta altura um idoso milenar, possuía vastos chumaços de pêlos brancos saindo de cada orelha que, dentre outros usos, convertiam a insuportável freqüência de soprano com amigdalite, temida por todos os homens, em uma inofensiva sinfonia de flautas marinhas.
O pergaminho trazia, além de um leve aroma de aliche, notícias da Ásia Menor, e seu conteúdo deteriorado pelo Mar Morto estomacal permitia apenas a leitura de alguns trechos vagos. Nas mãos de um leigo, seria como decodificar na lista telefônica mensagens complexas sobre a extinção iminente dos lêmures, mas Lao Tsé era um mestre da criptografia das meias palavras. Rapidamente desceu a vista sobre os caracteres e recordou do seu encontro, séculos antes, com a cabeça da Górgona, que veio boiando pelos oceanos até alcançar o litoral de Gu Ren. Coincidentemente, também bronzeava as sombrancelhas naquela ocasião, e não apenas não se transformou em pedra devido ao hábito de sempre dar as costas aos viajantes, como aprendeu grego com ela. Voltou aos fragmentos:
"Heráclito de Éfeso imerso em estrume morreu[...] Polemos, conflito universal; Panta rei, tensão contínua em movimento [...] Comido por seus cães [...] O rio não é o mesmo [...] Nunca se banhou mais de duas vezes [...] A isso chamou Dialética [...]"
Percebeu imediatamente ali a história de um homem nobre, sensível e humilde que fez voto de mendicância e tentou entender seu pequeno e turbulento mundo. Ao longo da vida, contudo, presenciou conflitos e destruição e desenvolveu distúrbios psíquicos como síndrome de pânico e depressão, crendo em um ciclo vicioso de guerra universal, que poderia derivar da própria Natureza, mas que provavelmente se devia à paranóia grega com a beligerância permanente de seus vizinhos megalomaníacos, os persas - até onde estava informado Lao por outros manuscritos empapuçados. Polemizando sobre tudo agressivamente, acabou marginalizado e renegado pela Pólis, e só lhe restava fazer amizade com os cães. Passou a viver nas ruas, em meio à uma matilha, o que explica ter sido devorado pelos seus cães. O trauma se agravou, transformando-se em uma fobia generalizada que o fez temer os mais singelos córregos, e daquele momento em diante não se lavou por mais de duas vezes, culminando por chafurdar no esterco como um epiléptico biruta. A chamada "dialética" na qual o infeliz de Éfeso acreditava, era, assim, uma doença, corretamente diagnosticada por Laozi, e que na atualidade designou-se como "raiva".
"Não fosse o mal que tão cedo o levou através do Aqueronte", pensou Lao Tsé, "e poderia ter vislumbrado o oceano além do charco dialético, esta simples gota de óleo na Unidade do Tao...".
"Não fosse o mal que tão cedo o levou através do Aqueronte", pensou Lao Tsé, "e poderia ter vislumbrado o oceano além do charco dialético, esta simples gota de óleo na Unidade do Tao...".
Traduz?
ResponderExcluir"Traduz-me e me perderás para sempre".
ResponderExcluirVeja isso como apenas uma reescrita taoísta da história que deixa nas entrelinhas o seguinte: a dialética ocidental, como movimento da incompletude permanente, não abarca nada além do transitório estado humano, seja em Hegel ou Marx, adicionando o elemento da "contradição", incoerente com a idéia de "oposição" orgânica original da dialética grega. Melhor elaborada por Heráclito, parte da noção de conflito que gera a mutabilidade da realidade. Aqui, a permanência, o que não muda, é o conflito. Em Laozi, a mutação é a constante imutável, e tudo o que ela afeta se modifica inevitavelmente (os ciclos - cosmológicos, orgânicos; e os estados neles inseridos). Apesar da aparente semelhança, o que funda a criação em Laozi não são pares opostos em conflito, mas a Unidade harmônica caracterizada pela energia essencial, o Tao. A polarização é apenas um momento posterior, também implícito, mas destinado a criar os extremos de percepção que possibilitam o terceiro momento, da multiplicidade visível ou "nosso pequeno mundinho").
Ah, seja bem vindo! Em breve, Lao Tsé e o Analista de Bagé!
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