Licença Creative Commons

21.8.12

Baby Lao

Jesus, o Nazareno e Sidarta, o Iluminado, foram os mais sábios dentre os Homens, mas Lao Tsé foi o mais sábio a escrever um livro. Foi também o único a comprovadamente ter nascido, crescido e desaparecido no lombo de seu Shar Pei enrugado mantendo sobre os ombros o mesmo rosto alvo e sereno dos reis míticos. Tão macia era sua derme facial, finos os fios de sua barba e de seus cabelos e tranqüilos seus olhos que, mesmo bebê, neutralizava nos visitantes o vício visual que ressalta assimetrias e oculta a harmonia. Causava neles o efeito geral de uma grande empatia mesclada a uma pequena dose incompreensível de estupor. A um único observador sua aparência pareceu estranha. O nome deste ser desequilibrado era Confúcio, o qual pressentiu a prodigiosa capacidade daquela criança e por ela nutriu rancor. 


16.8.12

Lobo Lao

Lao Tsé é um artífice da contrariedade. Sua mente antediluviana qual um fóssil protuberante de maracujá guarda  vivas as mil e uma sementes da instigação; as flores exóticas de seu pensamento inebriam dos eruditos aos curiosos, e atraem também toda a sorte de intransigentes parásitos, ávidos pelo néctar do Tao. Sua crítica sulfúrica contra a civilização e o modo dispendioso e complexo de viver é entremeada de ironias poéticas  e da dolorosa profundidade cosmogônica do I Ching. Eis porque Laozi é antes de tudo um Artista do Caminho Flutuante, venerado nos círculos mais elevados da criatividade.

Em certo instante inacessível às limitadas coordenadas temporais, Lao Tsé fazia seu le parkour habitual pelo umbral dos sonhos da humanidade quando a matéria revolcada e densa de um pesadelo tenebroso chamou sua atenção. Era Lobão em mais uma de suas projeções astrais regadas a álcool com rivotril:  imaginava-se um avatar da Umbanda com poderes descontrolados após invocar sem sucesso o Exú Caveira. Lao assumiu uma de suas dez mil formas, a de Morpheus, pairou sobre o vórtice onírico que avançava perigosamente sobre o Mundo dos Sonhos, e, com um gesto ameno e intenso como uma brisa mediterrânea, efervesceu as consequências terríveis da provocação amadora do 
ardiloso Exú.

Ao acordar, Lobão se viu em meio a um quarto destroçado e garrafas de uísque reduzidas a vidro em pó por suas próprias mãos. Ainda se julgava uma encapetada vímana transcendental, mas sentia na realidade os efeitos fortificantes do encontro pessoal com Lao. Curiosamente, a partir deste dia gradualmente se afastou dos psicotrópicos e das orgias, interessou-se pelos ensinamentos taoístas e se tornou um de seus seguidores mais ativos e estapafúrdios, praticando caridade em presídios e compondo canções como “A Queda” e “Você e a Noite Escura”, dedicadas exclusivamente ao Ancião de Gu-Ren.

8.8.12

Lady Lao

Graças aos poderes da meditação taoísta, Lao-Tsé pode assumir qualquer forma corpórea, sempre mantendo as rugas velhas e sábias de sua face milenar. Em algumas ocasiões, metamorfoseia-se em um poderoso Thar (um bode selvagem do Himalaia) para desenvolver a piroclástica expansão yang. E, em momentos alternados, assume o corpo de uma jovem iogue para exercitar a luxuriante introspecção yin. Os conhecimentos derivados desta avançada transcendência transsexual são propagados em Seitas de Mistérios pelo codinome "Lady Lao".

18.2.11

"Ninguém foge ao cheiro sujo da lama de MangueTao"

Mestre Yoda, um dos mais importantes discípulos de Lao Tsé, viveu apenas 14 de seus 900 anos em meio aos pântanos do planeta Dagobah. Neste exílio terrível, ainda foi capaz de treinar com as técnicas de autopreservação taoístas ("jedi" no idioma intergaláctico) um pupilo redentor batizado de Lao Skywalker  e apelidado "Luke", mas enfim se deprimiu, convalesceu e expirou. Lao Tsé, ao contrário, vem vivendo  alegremente por centenas de anos nos mais inóspitos hábitats da Terra, e tem especial predileção pelo mangue, o ambiente búdico por excelência, onde Siddhartha Gautama enfim ascendeu à humanidade plena sob a sombra de uma figueira.

Assim, chafurdando no lodo silvestre por incontáveis gerações, Laozi comprovou que a origem do Ser pertence a qualquer errático cometa de gelo, mas é o mangue, lamacento e salgado, o topônimo da evolução. Seu perfume putrefato e seu húmus pegajoso alastram-se e se imiscuem sobre todos os seres da Terra, sejam físicos ou espirituais, de um mero caranguejo ao venerado Buda. Quando o primeiro passo da jornada de mil milhas afunda sobre a lama, a fortuna se delineia na improvável consistência de mingau orgânico, de infecção telúrica. E quanto mais fundo no pântano da existência, gradativamente se revela a inefável transparência do Curso da Vida, a eterna Luz do Tao.

17.2.11

Tantra Tao

Lao visitava os esplendores do mundo árabe em Bagdá. Dormindo sobre seu camelo, sonhou com tamareiras que faziam sombra às nuvens, terraços irrigados com alhos gigantes que alimentariam todos os heróis; currais revestidos de mármore onde carneiros do tamanho de bois, bois do tamanho de elefantes e elefantes diminutos como chinchilas pastavam alegremente; minaretes engastados nas montanhas; tapetes mágicos ondulando na brisa do deserto... Lao viu e tudo o que viu não passava de um fractal da opulência do Velho Oriente.

Baahtra, o Sultão, era o maior, o mais gordo e o mais faminto dos homens. Em pé, tinha a altura e o peso de um cavalo de guerra. Sua largura era a de um hipopótamo jovem. Sua origem divina o concedera um pênis de macia madrepérola em ereção contínua. Seus fluídos eram recolhidos constantemente em galões de porcelana que enchiam um evaporante lago no centro do qual repousava. Seu vigor exigia um vasto harém cuja sexagésima quarta parte era usufruída e sacrificada a cada noite, ou do contrário produziria uma descendência comparável à dos ratos.

A montaria de Lao, Camelaozi, desgovernou-se à procura de abrigo e adentrou o Palácio de Baathra. Assustou-se com as dimensões do Sultão, refugou e derrubou Lao Tsé. Erguendo-se do chão, Lao deparou-se com o surpreso olhar real: era uma formiga branca diante daquele imenso ser. Mas não se moveu nem mesmo quando Baathra engasgou com a interrupção de sua sétima refeição e cuspiu dezenas de figos semimastigados aos seus pés. Afastou-os com a ponta de suas alpargatas de couro de dragão e disse:

"- Tua força é apenas aparência. Por dentro, és um barril de esterco. Por fora, bóias em sêmen putrefato".

O sultão nunca ouvira palavras hostis em sua vida. Tomado da cólera dos deuses, ordenou a morte imediata do atrevido visitante. Mil cimitarras surgiram dos vãos do Palácio. Lao curvou 100 lâminas com o pensamento, mais 100 com assobios, outras 100 declamando haicais de autodefesa, etc... até que restou um único soldado. Ele avançou e brandiu sua arma na direção do vulto caquético de Lao. A lâmina cruzou de alto a baixo o velho sábio, partindo-o em dois, e o soldado sorriu com desprezo antes de ver a si mesmo dividido no reflexo da cimitarra tombada. Lao o golpeara com o ar afiado do seu desvio. Diante do sultão, prosseguiu:

"- Comer em demasia e ejacular sem propósito: nem as bestas são assim. Alimenta-te do tantra, antes de te julgares forte".

Baathra urinava de medo, encharcando suas vestes impecáveis, jamais maculadas por um único grão de pó. Lao aproveitou a oportunidade: subiu ao alto de uma das colunas do Palácio e urinou também. Quando o jato alcançava o piso, centenas de metros abaixo, algo incrível ocorreu: o fluxo foi contido e permaneceu estático em pleno ar. E, com uma contração abdominal, voltou a subir, sendo reabsorvido totalmente ao fim de poucos minutos. Concluiu:

"- O que dizer daqueles que não podem controlar seus impulsos? Para reinar 10.000 anos é preciso descobrir o que é ser um homem. Desvelando o homem, compreende-se a mulher, o Céu e a Terra".

Nada mais sabemos de Baathra. Há rumores de que descobriu a felicidade ao abdicar do sultanato, virar mendigo e ser condenado à morte por aliciar todas as concubinas do Império na primeira revolução feminista orgiástica da história.

22.9.10

Dragon Lao

Lao Tsé é um mestre da velocidade. Seu pensamento é imediato e cortante, sua técnica é sucinta e precisa, sua imobilidade é relativa - e geralmente relativa ao referencial dos homens comuns, parvos trogloditas incapazes de ver em Noé um marinheiro a circunavegar o mundo em sua Barca imóvel, capitaneada por Lao Tsé. Ventania repentina, trovão ao longe, súbitas obnubilases, auroras boreais em pleno Equador terrestre, bugios em alvoroço... Sinais dos giros quânticos do velho monge, desaparecendo e reaparecendo no mesmo local antes que qualquer um, guiado por uma estranha sensação de ausência, se pergunte aonde ele estava.

Um caso recente foi registrado em Montevideo por um atento estudante que observava, do outro lado da rua, um jovial velho esperando o ônibus. Ele tomou uma linha sem paradas para a rodoviária, esquecendo atrás de si uma pilha com todos os 33 livros de Feng Shui da feira de Tristan Narvaja. Um segundo no tempo e uma apnéia lentíssima tomou  conta de sua mente, inebriada pela paralisia qual um leitão mergulhando em geléia de mocotó. Os livros haviam sumido, e o velho jovial desaparecia a bordo de outro ônibus antes de a cena voltar ao normal numa lufada  quente.

Assim é Lao Tsé. Não surpreende sua influência naqueles celebrizados como agentes da celeridade. Sua tartaruga de estimação, corredora constante e estratégica, foi imbatível mesmo diante do relampejante Aquiles. E Filípides, o mensageiro ateniense, aprendeu com ele técnicas de controle respiratório essenciais para evitar sua morte por extenuação antes dos 42 quilômetros fundadores da maratona olímpica. Já Nelson Piquet, o bonachão irônico movido por declarações polêmicas e orgias com modelos em seu iate, é um dedicado taoísta que estudou a vida e os textos sagrados com mãos pingando graxa e fedendo a gasolina. Pode-se inferir toda uma seqüência de pensamentos que levam a esta improvável conclusão a partir de um único evento, repetição cíclica de um grande momento de Lao Tsé:

1986. Mogyorod, Hungria. Grande Prêmio de Hungaroring. O novato Ayrton Senna impunha a Nelson Piquet uma dolorosa ultrapassagem e lhe roubava uma vitória até então incontestável. O bicampeão estava diante de uma ameaça real: um adversário impertinente e genial poderia golpear sua autoestima até que ele fosse reduzido de sua condição de mito displicente às desmoralizadas sarjetas onde agonizam os anti-heróis derrotados...

[neste instante, recordou-se de Lao, enlameado por Confúcio milênios antes, quando o super-filósofo cruzou seu caminho a bordo duma luxuosa carroça com quatro parelhas esplêndidas do haras Imperial. Dispunha  apenas de seu agonizante boi preto. Outrora fora o touro cuja cópula atraía princesas de reinos remotos e dispersava minotauros nos labirintos das eras míticas. Agora conduzia com vagar paquidérmico o sábio monge. Lao Tsé esperou um trecho sinuoso e deslocou o bom boi para a relva. A carroça de Confúcio logo girou em falso sobre um lamaçal, o vulto desajeitado de Boilao ressurgiu, e rebolou à frente de brancos garanhões durante o resto da viagem. ]

... Piquet esvaziou-se de aflições, tinha o espírito zen consigo. Na curva mais improvável do estreito e ardiloso circuito, atacou pela borda externa, emparelhou com Senna e girou o volante, travando todas as rodas no melhor exemplo conhecido de derrapagem controlada. Senna olhou de soslaio, apenas para ser saudado por dois dedos médios erguidos. Notável, mas ainda distante do mestre, como confessou mais tarde Confúcio: "- Hoje eu vi Lao Tsé. Estava sobre um boi preto, mas como se parecia com o dragão!".

19.9.10

Tao Marx

Muitos se perguntam como Lao Tsé pode viver tanto, ou como atua com discrição tão decisiva em quase todos os campos do saber humano, por toda a Terra. E, embora sejam questões óbvias, passam ao largo do que realmente importa. Seria algo como desvendar a origem do hambúrguer nos tártaros, que conservavam as carnes urinando sobre elas e utilizando-a como confortáveis selas de seus traseiros nus por milhares de quilômetros; ou do protetor solar na pasta de manteiga de leite de égua com a qual os mongóis besuntavam a pele do nascimento até a morte. Meras curiosidades históricas para as quais grande parte da sensível civilização atual não está preparada. Assim, o que importa é que Lao está entre nós, indubitavelmente, tentando reverter os danos da "incerteza metódica" que reduziu a mente humana a um Windows 3.1 e seus pensamentos a uma planilha travada do excel. 

Superado isso, há relatos fidedignos de um monólogo ríspido entre Lao Tsé e Marx, bem ao modo destas duas personalidades fortes. Em meio à uma crise de hemorróidas, durante a juventude, Marx viu-se impossibilitado de concluir seus estudos econômico-filosóficos, e, para relaxar, passava os dias sentado em uma bacia de água morna lendo o Dao De Jing. Sua extraordinária concentração e a repetição insistente das estrofes foi capaz de invocar a presença do velho mestre. Uma luz nebulosa invadiu o ambiente. Lao Tsé avançou dela como uma águia e silenciosamente lançou à bacia um pó branco e algumas folhas secas, largando o pequeno alforje curativo sobre o chão. Marx sentiu um borbulhar espumoso adentrar suas partes sensíveis: o alívio veio imediato e permanente como um urro visceral do Manifesto Comunista.

Estava tão feliz que se levantou sem as calças, expondo as indignidades para agradecer por tal milagre tão simples e eficiente. Lao, mantendo sábia distância, deteve o impertinente barbudo com voz macia:
"- Teus intestinos absorveram puro ópio chinês da primeira dinastia. Não sentirás nada por tanto tempo que a cura alcançará inclusive teus maus hábitos, as dores do presente e do futuro. Mas são tênues os limites entre a teriaga e o veneno. O ópio pode ser ambos, e com tal sucesso, que se diz, dos vícios e crenças obsessivas: o ópio é a religião do povo e a religião é o ópio do povo. Em teu caso, o ópio foi apenas o ópio. É a falta de um ou de outro que provoca o dissenso. Se faltam ambos, há harmonia".

A seguir, girou Lao em torno de sua longa túnica e desapareceu  em uma bruma, por entre livros  desfolhados, panfletos incendiários e uma quantidade estupenda de sanduíches embalados que poderia alimentar um Troll e, contudo, serviam para que o único marxista de batismo criasse sua obra vital sem interrupções. Marx, recomposto, não guardou toda a sabedoria infinita daquelas palavras, e acabou resumindo o encontro medicinal com o velho kitai na famosa crítica à teoria do direito de Hegel. Escreveu-a, segundo dizem, fumando em um longo cachimbo o ópio presenteado por Lao Tsé.

16.9.10

A fome dos neo-Budas

Lao Tsé mateava em seu porongo de bambu ao nascer do Sol quando a sineta da bicicleta azul assinalou a vinda do Monge Entregador de Jornal. Hábil, atirou com ambas as mãos e pés os 10.000 exemplares diários destinados ao velho Mestre sem se desequilibrar; tão leve estava após a entrega que seu biciclo passou a flutuar acima do solo, e isso porque restavam ainda uns mil gibis do Confúcio.

Lao estava imerso em papel impresso; apenas despontando ao alto a mão com o chimarrão a salvo. Afastou levemente a folha que lhe cobria o rosto. Trazia a seguinte notícia: "Fome diminui no mundo: cerca de 925 milhões de pessoas estão subnutridas em 2010. No ano passado, eram 1,02 bilhão". Apesar das complexas estatísticas considerarem que em cinco anos será possível uma humanidade na qual todos sejam gordos como o Buda, não incluíam o único aspecto ponderado por Laozi ao descartar a página meio segundo depois:

"Se morrem os famintos, não diminui a fome".

15.9.10

Jethro Tao

Ainda jovem Ian Anderson sofreu um duro golpe em sua recém iniciada carreira: ao ouvir Eric Clapton, soube que jamais poderia tocar guitarra melhor do que ele. E com gênios musicais despontando a torto e a direito por todo o Reino Unido, rapidamente consumiam-se todos os psicotrópicos já descobertos e também as últimas opções de instrumentos inéditos para uma banda de rock. Abalado, Ian se retirou para o Lago Ness, onde chorou convulsivamente. Suas lágrimas eram sinceras, e atraíram o famoso Monstro do Lago. Ian debateu-se apavorado e encalhou no lodo das margens ao presenciar atônito a grotesca criatura se elevar acima dele. Pensou que era a hora de se abater a punição do inframundo para sua melancolia infantil... Então, o paquiderme escamoso assumiu o resplendor esmeralda de um Dragão Mitológico, abriu sua bocarra e gentilmente estirou sua língua para fora, ondulando-a qual os degraus de uma escada. Lá de dentro, desceu Lao Tsé.

Antes que Ian pudesse externalizar qualquer surpresa, Laozi o suspendeu do lodo pelo colarinho e o colocou diante de si. Sem mover os lábios, disse:
"- O espaço entre o Céu e a Terra é como uma flauta. Vazia, ainda assim, inexaurível. Soprada, mais e mais sons produz".

Entregou à Ian uma flauta transversal esculpida em ouro e com o peso da seda, e concluiu:
"- Teu instrumento é a Terra, teu sopro é o Céu. O som, eis a obra do Tao".

Ao tocar Flautaoíst, Ian Anderson adquiriu virtuosimo imediato; fundou a seguir o mais improvável e incisivo conjunto de sua época, o Jethro Taoísm (logo contraído para Jethro Tao, e, depois, por pressão dos empresários, Jethro Tull, solução engenhosa que também agradou o público camponês da Escócia). Não é preciso dizer que, além da criação de carpas chinesas empreendida por Anderson, muitas composições supostamente homenageiam Lao Tsé: da célebre Aqualung ("An old man wandering lonely / Taking time / The only way he knows"), passando por My God ("You are the god of everything / He's inside you and me"), até a recente Heavy Horses, praticamente um plágio do epigrama XLVI do Livro do Sentido e da Vida.

14.9.10

As babas da Dialética

Lao Tsé bronzeava sua longa barba alva em uma praia no Mar Amarelo, deitado sobre uma esteira de bambu. Uma sereia emergiu das ondas e regurgitou um pergaminho semi-digerido sobre ele, iniciando logo um estridente canto monofônico. Lao, a esta altura um idoso milenar, possuía vastos chumaços de pêlos brancos saindo de cada orelha que, dentre outros usos, convertiam a insuportável freqüência de soprano com amigdalite, temida por todos os homens, em uma inofensiva sinfonia de flautas marinhas. 

O pergaminho trazia, além de um leve aroma de aliche, notícias da Ásia Menor, e seu conteúdo deteriorado pelo Mar Morto estomacal permitia apenas a leitura de alguns trechos vagos. Nas mãos de um leigo, seria como decodificar na lista telefônica mensagens complexas sobre a extinção iminente dos lêmures, mas Lao Tsé era um mestre da criptografia das meias palavras. Rapidamente desceu a vista sobre os caracteres e recordou do seu encontro, séculos antes, com a cabeça da Górgona, que veio boiando pelos oceanos até alcançar o litoral de Gu Ren. Coincidentemente, também bronzeava as sombrancelhas naquela ocasião, e não apenas não se transformou em pedra devido ao hábito de sempre dar as costas aos viajantes, como aprendeu grego com ela. Voltou aos fragmentos:

"Heráclito de Éfeso imerso em estrume morreu[...] Polemos, conflito universal; Panta rei, tensão contínua em movimento [...] Comido por seus cães [...] O rio não é o mesmo [...] Nunca se banhou mais de duas vezes [...] A isso chamou Dialética [...]"


Percebeu imediatamente ali a história de um homem nobre, sensível e humilde que fez voto de mendicância e tentou entender seu pequeno e turbulento mundo.  Ao longo da vida, contudo, presenciou conflitos e destruição e desenvolveu distúrbios psíquicos como síndrome de pânico e depressão, crendo em um ciclo vicioso de guerra universal, que poderia derivar da própria Natureza, mas que provavelmente se devia à paranóia grega com a beligerância permanente de seus vizinhos megalomaníacos, os persas - até onde estava informado Lao por outros manuscritos empapuçados. Polemizando sobre tudo agressivamente, acabou marginalizado e renegado pela Pólis, e só lhe restava fazer amizade com os cães. Passou a viver nas ruas, em meio à uma matilha, o que explica ter sido devorado pelos seus cães. O trauma se agravou, transformando-se em uma fobia generalizada que o fez temer os mais singelos córregos, e daquele momento em diante não se lavou por mais de duas vezes, culminando por chafurdar no esterco como um epiléptico biruta.  A chamada "dialética" na qual o infeliz de Éfeso acreditava, era, assim, uma doença, corretamente diagnosticada por Laozi, e que na atualidade designou-se como "raiva".

"Não fosse o mal que tão cedo o levou através do Aqueronte", pensou Lao Tsé, "e poderia ter vislumbrado o oceano além do charco dialético, esta simples gota de óleo na Unidade do Tao...".

13.9.10

Lao Tsé e Walrus Eggman

O Cosmos é vasto, infinito, e nele a singela abstração denominada "tempo" não passa.de uma unidade de distância. É o que dirão muitos, ignorando que, em um instante incognoscível do  Momentum Divinorum a imperar sobre as outras dimensões, as horas rastejavam para  ninguém menos do que John Lennon. Debruçado sobre um pachorrento porco voador, chorou copiosamente até seus óculos se perderem em uma poça de lágrimas. Lembrara-se de como Yoko, aquela mulher vil, abandonou sua promessa de cometer arakiri caso ele desencarnasse, preferindo uma viuvez milionária regada a saikirinha de morango, viagens internacionais, mostras de arte moderna e a fama de ter dissolvido a maior banda na breve história do mundo. Deprimido, começou a duvidar dos seres de polietileno, de garotas com olhos caleidoscópicos, de frangos congelados que despertam para se vingar da humanidade e da vida eterna. A ausência de heroína e lsd em uma sociedade de espíritos agravou a crise. Contudo, quando Lennon estava prestes a sofrer um colapso nervoso, consolidando sua tese de que os planetas são feitos de celofane e papel machê, e os sentimentos não passam de grandes marshmallows derretidos pendurados na abóbada celeste por um malévolo Mr. K., Glass Onion, seu veículo espacial personalizado, aproximou-se da pequena cascata onde Lao Tsé praticava ioga todas as manhãs. Reconhecendo imediatamente o Grande Mestre que renegou graças à sua adoração ególatra por Sexy Sadie (um travesti indiano que sabia levitar), manobrou sua  vímana e ativou intuitivamente o transliterador galáctico de idiomas:

"- Lao, Texpert of all the elementaries i-me-mines, I really don't know anymore if Eternity is something boring as visiting Penny Lane or  if It can be a permanent wave that blows up our minds across the Universe. I feel i'm gonna die again, after a heavy... a heavy shot". [ambiguous meaning]
O Sábio inspirou profundamente por sessenta e quatro minutos, expirou por igual período e emitiu um leve sussuro semelhante ao último silvo de um curió milagrosamente velho:
"- A day in the Life... That's what life is".

John esperara diligentemente alguma resposta, e foi tomado por cada respingo vital daquela sentença sucinta e mágica com algo de déja-vu. Sua mágoa desvanesceu  em uma sensação idêntica a que tinha quando, após mais um show frustrado pela histeria coletiva do público, alcançava os camarins entupidos de fãs loucas e nuas. Comovido, agradeceu a Lao Tsé entregando-lhe uma cópia autografada do White Album. Lao pediu que enviasse saudações ao beatle George e voltou ao ioga sem revelar que preferia Yellow Submarine.

Lao Tsé e Coronel Kurtz

Lao Tsé sorveu sem ruído a sopa de raízes e mentalizou uma tv de plasma para assistir a última hora de Apocalypse Now. Vira a primeira hora há duas horas, a segunda hora há uma hora e, mesmo com o intervalo de outra hora para o jantar, concluiu o filme em apenas três horas. Satisfeito, pensou consigo: "- Entre Lao e o Camboja há um longo e sinuoso caminho".

12.9.10

Lao Tsé e Sun Tzu

Sun Tzu chegou à província de Gu Ren para ter lições com um mendigo célebre por sua sabedoria universal. Ansiava pela Arte da Guerra, pois havia sido humilhado por sua irmã menor em um jogo de Go. Lao Tsé não sabia quem era, mas o aguardava sentado sobre um lenho tosco de araucária. Ao ver o Mestre, o imberbe Sun saltou de sua girafa e quebrou o pé. Lao conteve um pequeno esboço de riso silencioso com sua longa barba. Sun Tzu rastejou em agonia e assumiu a respeitosa posição do lótus; seu pé disforme era um estame murcho. Lao Tsé, de costas ao neófito, elevou as mãos para o Céu e exercitou os katis do Panda, da Garça, do Tigre, do Bambu, do Gambá e do Ninho de Andorinha em um único e sincrônico movimento. Virou-se e esticou o longo braço na direção de Sun Tsu, que nada percebera. Seu dedo médio, apenas ele, inclinou-se para cima, num ângulo de 90º com a palma da mão, perfeitamente imóvel e paralela ao solo. Perguntou: "- Que vês?". O pupilo, educado na Corte de Wu, não era qualquer Gafanhoto, e, recordando-se de que o idiota acompanhou o dedo ao invés do Céu, respondeu com penetrante olhar para as nuvens: "- O Céu, Mestre!". Antes que pudesse completar a frase, foi violentamente golpeado no nariz e, jorrando lágrimas de sangue, ouviu de Lao Tsé: "- Estúpido é aquele que olha o Céu diante da ameça do kung fu. A força do Tao lhe ensinará a ver as estrelas mesmo sob a luz do dia". E assim Sun Tzu, com mil constelações girantes ao redor de sua cabeça, tornou-se discípulo de Lao Tsé.